segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Serra Fina: Com saúde não teria graça (parte 2 de 2)

Amanheceu na Serra Fina, a temperatura era muito mais amena às 06:01h da manhã, 1°C. Saímos da barraca, rápido café da manhã, empacotamos tudo e seguimos pro nosso (na verdade meu) primeiro objetivo do dia, culminar o Pico do Avião pra registrar a medição utilizando o aparelho de GPS de mão. Melhor ainda, pois tínhamos dois aparelhos diferentes. A subida não reserva grande segredo, basta fazer a descida da Pedra da Mina até a cota dos 2.550 metros de altitude, sem chegar ao fundo do Vale do Ruah onde a altitude varia pouco e fica por volta dos 2.515/ 2.518 metros de altitude. Do colo, onde há um pequeno cume piramidal, contorná-lo pela esquerda e começar a trepar pedra até o cume, onde se chega em não mais que vinte minutos.

Carambolas, que vista! A face sul da Pedra da Mina reserva um segredo impressionante, chegando à beirada do cume do Pico do Avião, olhando pra baixo, se tem a visão da assustadora subida pouco freqüentada da rota sul, classificada como muito difícil, dividida em dois dias, partindo de Queluz. O desnível é grotesco, quase 2.000 metros verticais desde a propriedade privada. Poucos a fizeram e me parece que está fechada temporariamente, pois o dono da propriedade não está permitindo o ingresso em suas terras.



(Note uma gota de sangue na lente de minha câmera!)

Mas a melhor visão está a leste, o Pico Cabeça de Touro muda um bocado, se tornando uma verdadeira coleção interminável de ranhuras profundas, falhas na montanha. Sem dúvida, uma das mais belas da serra, e eu diria uma das dez mais impressionantes do Brasil. Inclusive, ele tem um sub cume bem mais abaixo do seu topo, um pequeno morro que é idêntico ao Pico do Escalavrado da Serra dos Órgãos, que curioso!

Enquanto o Flávio trabalhava, eu media a montanha esperando os aparelhos de GPS estabilizarem, e, obviamente, fotografava também.

Garmin Etrex Vista Parofes: Variou de 2.704 a 2.706 metros ao longo de seis ou sete minutos.
(precisão informada pelo GPS de 7 metros)
Garmin 60 csx Flávio: Variou de 2.703 (cota que apareceu por 2 ou 3 segundos e nunca mais deu as caras) a 2.708 metros ao longo do mesmo tempo.
(precisão informada pelo GPS de 7 metros)

Baseado nisso, no tempo claro, na pressão atmosférica estável, tomei como medição a menor das altitudes encontradas e mais constante: 2.704 metros. Observem que, a uma precisão de sete metros (que também não é muito segura com gps de mão), isto pode variar de 2.697 metros a 2.714 metros. Só mesmo com um geodésico pra tirar a “prova dos três” (considerando a minha escolha de 2.704 metros). Putz, é grande! Eu esperava algo em torno de 2.675 metros e foi a altitude que usei quando criei a página da montanha no summitpost dois anos atrás.

Gastamos uma meia hora ali no topo da montanha, mas não fomos até os destroços do mono-motor, eu não queria me desgastar mais, pois o trajeto do dia eu já conhecia em 80% de sua totalidade, faltando apenas a subida do Pico dos 3 Estados. Sabia que uma longa e quente caminhada nos aguardava. Além do mais, meu estado físico era uma dúvida constante em um cantinho de meus pensamentos. Descemos.

Chegamos na base da Pedra da Mina a 2.515 metros de altitude, na extremidade do Vale do Ruah, às 09:00h. Entre sair da Pedra da Mina, descer, culminar o Avião, medir e fotografar, descer até o Ruah, gastamos 1h15min. Rápido até. Seguimos com a travessia do vale que felizmente foi muito mais fácil já que colocaram fitas adesivas, facilitando a orientação em meio ao caótico complexo de capim anta de dois metros de altura.

Mais um presente, o vale estava todo congelado, havia sincelo pra todo lado, cristais de gelo de 10 cms de altura em toda sombra e já passava das 09:00h, com uma temperatura aproximada de 20°C. O dia seria muito quente.

Passamos pelo vale muito rápido, em uns dez minutos chegamos ao Rio Verde, e continuamos acompanhando sua margem até chegar ao ponto onde há uma “pequena praia”, onde Tácio e eu matamos a sede dois anos atrás durante o ataque ao Cabeça de Touro, uma laje de pedra com as águas cristalinas do rio ao lado da seqüência de pequenas quedas d’água. Sentei ali enquanto o Flavio foi trabalhar, comecei a lavar meu rosto, nariz, cabeça, quando notei que a poça de água sob a grande rocha que jaz sobre a “pequena praia” estava congelada. Uma poça grande, que estava coberta por uma camada de 2 cms de gelo, filmei e me diverti.



Abasteci meu reservatório com três litros de água, meu pequeno cantil de 400ml, e esperei pelo Flávio. Bebemos o máximo que conseguimos e seguimos rumo ao Pico dos 3 Estados, onde terminaria nosso terceiro dia. Checando no GPS, haveria outro ponto de água após o 3 Estados na cota dos 2.025 metros de altitude, o que não parecia ser tão distante já que o desnível era relativamente pouco, quase nada aquém dos 600 metros verticais. Fomos tranqüilos achando que nossa água daria.

Seguimos na consecutiva subida e descida de morrinhos após o final do Vale do Ruah, o que desgasta bastante e leva tempo. Avançamos bem até que chegamos à crista do Morro Cupim do Boi, belíssima formação da Serra que na verdade não é uma montanha, mas é tratada como tal por todos que ali passam, e só pela beleza visual que proporciona, merece o tratamento dado!

Ali vimos indícios de incêndio recente, com a vegetação ainda se recuperando. Encontramos a descida e acompanhando os totens chegamos à florestinha de bambu na base do Pico dos 3 Estados, a mais ou menos 2.450 metros de altitude. Resolvemos fazer uma parada para banheiro. Nossa, que parada, ficamos ali por meia hora no total. Preguiçosamente reerguemos as mochilas e começamos o ataque ao Pico, um pouco cansados, mas com tempo de sobra pra culminar a montanha com luz do sol por horas a fio.

Ganhamos altitude e em mais ou menos quinze minutos terminamos a primeira parte. A subida do 3 Estados é dividida em dois escalões e uma crista, o primeiro escalão faz o caminhante recuperar a altitude perdida durante a descida do Cupim do Boi, chegando novamente a cota dos 2.550 metros. Depois há a crista que lentamente ganha altitude e que faz pouca diferença, ao longo de cerca de trezentos metros de crista só se ganha mais ou menos trinta metros de altitude. Então, ao final da segunda fase do ataque, a altitude é de cerca de 2.580 metros, e o mais exigente está por vir, os 85 metros verticais finais.

Começa pela travessia de mato alto novamente e depois se inicia o trepa pedra alternado com mato alto bem inclinado. No final do dia, isso cansa pra caramba. Erguer o corpo e a mochila em partes cuja inclinação mais parece escalada é cansativo, tudo isso a 30°C de sol, sem uma nuvem sequer, e economizando água, com sede.

Lutando contra o altímetro do GPS e contra minha narração que só arrancava expressões carrancudas do rosto do Flávio (Rah! Risos), finalmente, às 14:57 horas, chegamos ao tripé de vergalhão do cume do Pico dos 3 Estados, a 2.665 metros de altitude (meu gps deu 2.666m). Há também no cume um alto “mastro” que suspeito fora um dia suporte de uma bandeira, não sei da História da estrutura.

Mais uma vez, mantivemos a média de sete horas de caminhada, desta vez minutos antes de completar-se o ciclo da sétima hora, incluindo a subida ao Avião, sessão de fotos, parada no Rio Verde de meia hora, mais fotos, parada para banheiro de meia hora na base da montanha. Olha, fomos muito bem viu! Um quarentão e um doente de medula óssea às beiras de completar 35, que dupla de arrasar a Serra...rs



Montamos a barraca, e durante o próprio processo já estávamos bem descansados. Gastamos um tempo escolhendo já que praticamente todos os pontos têm pedras no chão. Acabamos ficando bem ao lado do tripé de vergalhão. Fizemos um lanche, e aguardamos a hora do pôr do sol pra fotografar mais uma vez as cores sobre todo o maciço do Itatiaia, além é claro de registrar o nascer da Lua Cheia. Pronto, lá se foi uma hora só fotografando e filmando.

Do lado oposto, o sol se pôs ao lado da Marins – Itaguaré em um formato curioso, eu não podia ver a “bola” propriamente dita do sol, mas um formato curioso que me lembrou a fumaça de charuto de desenhos animados do Pica Pau. Um espetáculo. Entre nós e o astro rei, camadas e mais camadas de montanhas...

Logo anoiteceu e fomos dormir pensando na quantidade de água e na longa descida que tínhamos até a civilização. Do topo da montanha podíamos ver a subida do Alto dos Ivos. Aliás, eu nunca havia apreciado uma foto sequer da montanha e piamente acreditava em uma crista que alguém deu nome, mas o formato é muito belo, piramidal, de montanha mesmo! A subida está toda marcada e é visível mesmo a quase dois kms de distância de onde estávamos, tendo a Pedra do Picú como fundo.

A noite foi menos fria, nem negativo deu, sem vento e límpida. Quando amanheceu fazia 3°C e havia algumas cirrus sobre nós, de grande altitude, e no geral o tempo parecia muito estável, o GPS mantia a mesma pressão, inalterada. Seria mais um dia quente pela frente, e longe da água! Detalhe, a marcação do Tácio deste ponto de água dizia “água fraca”, então sequer certeza de que teríamos água lá rolava. Na hora que arrumávamos as coisas notei dentro da barraca um bicho pau (Clonopsis gallica). Segunda vez que isso me acontece, a primeira vez foi em 2009 no acampamento Alsene, Parque Nacional do Itatiaia. Sessão de fotos do bichinho intruso e divertido.

Procuramos sair bem cedo, e depois de arrumar tudo partimos. Mais uma vez, a rota era clara e sem dúvidas, perdemos altitude rápido chegando ao cumezinho que há mais abaixo, um sub cume do 3 Estados, passamos por ele, descemos a baita piramba oposta inclinada até o colo que liga o maciço do 3 Estados com uma crista oposta composta por três pequenos cumes antes do Alto dos Ivos. Foi realmente duro galgar cada um dos morrinhos sob o sol forte. Rosto, braços, nuca já bastante queimados e sem proteção alguma. Eu pensei que haveria alguma proteção de nuvens mesmo com tempo bom e por isso não levei protetor solar pra economizar peso. Combinação muito, muito ruim...

Descemos até o fundo do vale que separa os três “cuminhos” do Alto dos Ivos, chegando a altitude de 2.390metros, bem baixo já. Agora o pior, teríamos que subir tudo de novo pra chegar ao topo da montanha, pois a descida só começaria a partir de lá. Dureza! O sol maltratava mesmo, a água estava em economia, a temperatura estava facilmente em torno de 32°C ou 33°C, e a sensação térmica por causa da ausência de vento e exercício físico, o que aquece o corpo, lá pelos 40°C. Gente, que isso...terrível...

A subida foi menos penosa que pensávamos ser, e ainda nos demos ao luxo de soltar as mochilas no alto dos 2.524 metros do cume do Pico Alto dos Ivos pra fotografar. Só que dessa vez, por causa do calor absurdo, ficamos só uns dez minutos e não meia hora. Retomamos o longo caminho de descida.

Descemos o tempo todo pela crista rochosa até a altitude de 2.300 metros, quando entramos em alguma vegetação de que? Bambus novamente. Mas que saco que esses bambus não acabam nunca! Felizmente ali já era o limite deles, e pouco mais abaixo acabaria essa ladainha de puxar as mochilas. Chegamos ao vigésimo não sei o que acampamento a 2.252 metros. Parecia que agora iríamos começar a perder altitude, nesse momento a água do Flávio acabou.

Agora só tínhamos a minha água que estava no final também. Quando partimos do 3 Estados ele tinha 2 litros de água e eu 1.4 litros. Quanto mais eu teria? Não sei e não olhei pra não me preocupar. Seguimos descendo.

Descendo? Mas que descida é essa que tem mais subida que descida? Tudo que descíamos voltávamos a subir do outro lado, uma seqüência de alguns morrinhos, onde há um monte de arame farpado espalhado pela serra. Depois de algum tempo chegamos a descer um pouco chegando à altitude de 2.100 metros e nos mantendo nela por uma eternidade, pelo menos nesse momento a trilha era bem aberta e agradável, nos protegendo do terrível sol. Minha água acabou, e o Flávio não quis beber nenhuma vez todas as vezes que perguntei se queria. Eu sabia que ele estava com muita sede.

Olhei o GPS, faltavam 650 metros em linha reta até o ponto “água fraca”. Lá fomos nós rumo ao filete. Andamos um tempo relativamente longo sem alterar um metro de altitude e cheguei a brincar com o Flávio: “Cara, daqui há pouco vamos nos registrar na portaria da parte alta do Itatiaia, porque estamos chegando lá cacete!”. Uma leve descida se iniciou, a trilha acabou e se tornou uma estrada antiga sem uso com vegetação rasteira a mais ou menos 2.050 metros. Pouco depois chegamos ao filete de água, e tinha água! Ufa...matamos quem estava nos matando...

Ainda tínhamos quilômetros de caminhada à frente sem nem saber, os piores, em estrada. Depois do final da trilha, seguimos pela antiga estrada até que perdemos altitude em cada curva chegando a um local que acredito ser o Sítio do Pierre propriamente dito, algumas construções ao redor de um enorme gramado verde a 1.830 metros. Ali finalmente consegui sinal de celular (a TIM está com os dias contados comigo, chega dessa porcaria que não pega em lugar nenhum!) e liguei pro taxista Antonio nos pegar.

Só que o carro do bonitão não sobe até o Pierre, tínhamos mais entre 2 e 3 kms de estrada abaixo até chegar na estrada que sobe de Itamonte até a Garganta do Registro. Foram os piores quilômetros, muito, muito sol. Meus braços e rosto estavam já tão maltratados que o simples relance de luz solar me arrepiava os pelos de tanta sensibilidade. Hoje sei que sofri queimadura de altitude no rosto, que está muito, muito pior. Parece que fui vítima de um incêndio acidental ateando fogo em carvão pra churrasco, narinas, nariz e bochechas torrados.

Descemos reclamando do sol e da falta de proteção, nossa culpa, seres humanos que desmatamos tudo indiscriminadamente. Passamos o tempo todo sem encontrar uma pessoa sequer. A única casa que vimos uma pessoa, esta tratou logo de entrar ao nos ver, provavelmente evitando ter que dar água ou algum contato indesejado com os montanhistas que, aos olhos dos locais, podem ser na maioria das vezes farofeiros baderneiros. Infelizmente, muitos são, então não os culpo.

EU gritava com o GPS que não tinha sinal até com céu azul, já sem a esportiva, procurando quanto faltava pra finalmente chegarmos na estrada asfaltada quando de repente, após uma curva, ali estava, a 1.580 metros de altitude. FIM! Depois de 6h45min andando terminamos nosso quarto e último dia.

Sentamos na única parte de sombra que havia. Ali finalmente entreguei os pontos pro cansaço hematológico, psicológico, geral. Desabei no gramado depois de aumentar meu rendimento dia a dia, andando cada vez melhor que o dia anterior. Coube ao Flávio a missão de se preocupar com qualquer coisa, eu não funcionei mais por algum tempo.



Antonio chegou com companhia no carona, estacionou, e logo em seguida saiu com o carro. Não nos viu! Como cabia ao Flávio se preocupar porque eu sangrava no gramado, levantou e começou a andar pela estrada com meu celular na esperança de ter sinal. Nada. Porcaria de TIM! Daí eu voltei a funcionar, e enquanto o Flávio descia a estrada eu comecei a subir, só precisei andar vinte metros, Antonio voltou com o táxi.

Entramos e pegamos a estrada. Fizemos uma parada em um restaurante/ hotel onde dormi em 2008 antes de subir pro Itatiaia, contra meus princípios bebi uma coca-cola, meu corpo pedia açúcar e foi a primeira coisa que pensei. Voltamos pro táxi e continuamos até chegar em Passa Quatro depois de 55kms de estrada, no Hotel Serra Azul, de frente pra antiga estação da linha férrea de Passa Quatro, hoje desativada. Só funciona mesmo o passeio do Maria Fumaça, trem turístico que sobe a uma certa altitude da mantiqueira dentro das florestas, de quinta a domingo. Passeio que quero levar a Lili pra fazer!

Antes mesmo de sairmos da serra decidimos dormir em Passa Quatro pra lavar o corpo, fotografar um pouco a cidade e comer uma refeição decente. Aliás, eu não iria querer sentar ao meu lado em nenhum ônibus, meu cheiro era uma combinação de suvaco fedido de velho + sangue + mau hálito de fome. Um lixo humano. Eu não queria incomodar ninguém com isso.

Nos registramos de forma bem simples: “Meu nome é Paulo e o dele Flávio”. Pegamos a chave e subimos pro quarto. Eu não queria contaminar o ambiente com meu cheiro ahahahaha...

O quarto era o mais simples possível, o banheiro não tinha sequer cortina pro box. Flávio foi tomar banho enquanto eu contabilizava as feridas e tirava as placas de sangue do nariz, acabando com meu terceiro e último rolo de papel higiênico. No primeiro dia dei uma topada em um toco de bambú mau cortado e fiquei com um hematoma terrível na canela, que já estava bem melhor felizmente. Meus dedos dos pés doíam um pouco, mas nada demais. O pior era as queimaduras, que só pude me dar conta da cagada em casa já, pois a coisa tá feia.

Depois da limpeza generalizada, saímos pra buscar comida em pleno domingo, em Passa Quatro. Ah! Piada não? Tudo fechado, as únicas pessoas na rua estavam arrumadas, como para uma festa de peão de boiadeiro, mas pro que seria um comício político, onde? Na porta do hotel. Passei pela pensão onde comi quando cheguei na cidade, “Pensão Dona Filhinha”, estava fechada. Por sorte, a Soraia, dona da pensão, gentilmente nos fez entrar pela sala da casa e nos atendeu pra que não ficássemos com fome. Comemos feito leões um prato de operário que parecia nunca acabar, mesmo depois de uma centena de garfadas.

Voltamos pela cidade e depois de passar pelo hotel pra buscar minha câmera, fotografamos até o sol se pôr. Passamos algum tempo no hotel só relaxando e conversando sobre a travessia e diversas coisas enquanto a multidão tomava conta da frente do hotel, onde já havia um caminhão com equipamento de som esperando a hora pra começar a politicagem.

Por volta das 20:20h saímos novamente pra comer, e tinha espaço na barriga! Procuramos até que encontramos uma lanchonete que vendia sanduíches, sorvete, sucos. Pronto, foi ali mesmo. Ao som de motocicletas sendo destruídas, fogos de artifício, som alto dos carros com canções de propaganda, e a cidade inteira desfilando de salto alto e penteados emo, cada um comeu seu avantajado sanduba que, pelo menos, estava suculento. Bebi dois sucos de laranja, líquido com o qual sonhei durante os dois últimos dias. Em seguida voltamos pro palanque pra dormir.

Ao contrário do que pensamos, que seria impossível dormir com tanto barulho e cercados de discursos inflamados sobre falha de uns e erro dos outros, o rabo alheio, em dez minutos o Flávio já roncava e eu fui pro mesmo longínquo planeta dez ou quinze minutos depois.

Despertamos cedo, antes das sete. Flávio saiu pra fotografar, trabalhar mais um pouco, e eu fiquei preguiçoso deitado até quando ele voltou, quase uma hora depois. Daí foi arrumar tudo, tomar café da manhã (que foi melhor do que o esperado!), e deixar o hotel. Nos despedimos na rodoviária e o Flávio seguiu seu caminho no ônibus de 08:40h pra Cruzeiro, só o primeiro de uma seqüência de três até chegar em casa na cidade de Petrópolis.

Eu esperei dar nove da manhã, peguei minhas mochilas e comecei a andar pela cidade procurando um presentinho pra Lili, o único jeito de matar a saudade da patroa...rs. Encontrei uma lojinha de artesanato de frente pra pracinha que aceitava débito, que milagre! A dona era simpatia em pessoa, batemos papo por uns dez minutos enquanto eu escolhia os adornos e pagava. Voltei pra rodoviária faltando dez minutos pro meu ônibus e no caminho ainda fotografei uma bela flor na praça.

Bem, é isso. Longa aventura, uma das melhores que eu já tive nas montanhas do Brasil, nosso país que, ao contrário do que os gringos pensam, tem montanha pra caramba. Em relação ao título do relato, brincadeira com assunto sério à parte, a Serra Fina não é tão dura quanto o boato que corre. Mesmo com meu sangue oxigenando a 60% do normal, o que faz com que a 2.500m eu me sinta como a 4.500m, com falta de oxigênio, fiz a travessia completa sem maiores complicações. A Serra Fina não é um passeio, mas também não é nenhum bicho de sete cabeças.

Gostaria de deixar registrado dois agradecimentos importantes:

Primeiro ao Flávio, que provou exercer uma parceria tremenda na montanha, me deixando confortável como me sinto quando ando com meus outros companheiros Pedro Hauck e Tácio Philip;

Segundo ao Tácio, cujas marcações de pontos nos deu certeza de cada passo durante a travessia, marcações perfeitas, precisas. Cara, de novo, você deveria ter ido!

Termino com uma única frase: “No dia 7, vote 45!”

Parofes

FOTOS:


Flavio fotografando nas imediações do cume da Pedra da Mina. Aquela crista ao fundo é a crista do Morro do Tartarugão!

Medindo o Pico do Avião.

Face sul da Pedra da MIna.

Auto-retrato no cume do Pico do Avião

Flavio na região de cume do Pico do Avião fotografando. Destaque pro Cabeça de Touro cheio de ranhuras atrás dele e pro Itatiaia ao fundo.

Vale do Ruah congelado.

Já viu uma foto igual a essa? Cupim do Boi a esquerda, Prateleiras no Itatiaia lá ao fundo bem pequeno no meio, e à direita o Pico Cabeça de Touro. Demais!

Flávio no topo do Cupim do Boi apreciando a vista.

Na crista do Pico 3 Estados que se vê ao fundo.

Metros finais na subida do Pico dos 3 Estados.

Cume dos 3 Estados.

Flávio fotografando o PNI em cores de pôr do sol.

Pôr da Lua.

Pôr do Sol.

Nascer do sol e lindo mar de nuvens.

Bicho Pau em minha mão.
Topo do Pico Alto dos Ivos, 2.524m.

Rua de Passa Quatro.
Árvore solitária em uma colina próxima à cidade.
Flor na pracinha central.

Abraços a todos!

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Serra Fina: Com saúde não teria graça (parte 1 de 2)

As coisas estão caminhando lentamente. Dia 18 de setembro fiz juntamente com minhas irmãs o teste HLA no Hospital das Clínicas, teste este que nos dirá quanto temos de compatibilidade para fins de transplante de medula óssea. O resultado está pra sair e logo saberei meu futuro. Nesse meio tempo, me sentindo muito melhor, marquei com o amigo Flávio Varrichio uma investida para montanha, realmente ousada dadas as devidas circunstâncias, Serra Fina. Eu sei, não deveria ter ído pra lá, mas não suportava mais ficar em casa vendo outros amigos indo pra montanha, então fui pra lá tocar pra frente um projeto antigo. A companhia não poderia ter sido melhor.

Planejamos tudo cuidadosamente então não podia dar errado, não havia margem de erro e foi assim que a travessia aconteceu em praticamente 99% do trajeto. O termo “projeto antigo”: Há quase dois anos existe a idéia de medir uma montanha pouco visitada por quem faz a travessia da Serra Fina, uma das cinco mais populares do Brasil, o Morro do Avião (aka Pico do Avião ou Pico do Acidente, ou seu nome menos divulgado: Pico São João Batista).

A montanha tem uma História bizarra, no dia 5 de janeiro de 2000 um avião mono-motor, prefixo PT-KMB saiu do Campo de Marte, em São Paulo, com destino à Juiz de Fora, Minas Gerais. Pouco depois colediu contra o pico, ao lado da Pedra da Mina. Havia quatro ocupantes, infelizmente ninguém sobreviveu. Os corpos foram resgatados pela aeronáutica e levados até o campo de Futebol da ESEFIC no município vizinho em Cruzeiro, São Paulo. Os destroços nunca foram removidos e desde então, há quase 13 anos, montanhistas curiosos visitam o que sobrou da aeronave na montanha.

Pois bem. Na primeira vez que fui a Serra Fina já vi o avião lá, mas não pesquisei nada. Acidentes aéreos são bem comuns nas montanhas do Brasil. Na Serra Fina mesmo, no Pico dos 3 Estados, já aconteceu outro desastre onde todos morreram. Na Serra do Mar Paranaense, em uma montanha chamada Lontra (vizinho do Agudo de Cotia pra quem não conhece), também há um avião caído desde a década de 1980. E por aí vai...

Mas o que me chamou atenção foi o tamanho do Pico do Avião. É enorme. Visto da Pedra da Mina nota-se que seu tamanho seria de no mínimo 2.650 metros de altitude já que é pouco mais baixo da montanha, e muito próximo, de cume a cume em uma linha reta, a distância é de apenas 950 metros, por trilha, 1,4 kms. Decidi: “preciso ir lá!

Mas pra chegar lá, eu precisaria no mínimo subir pelo Paiolinho até a Pedra da Mina, mas como já subi o Paiolinho quatro vezes e nunca havia feito a travessia propriamente dita, portanto nunca havia feito cume no Capim Amarelo, Melano, 3 Estados e Alto dos Ivos, decidi encarar a travessia mesmo com esse problema de saúde que pode acabar com minha vida. “Bom, se é pra ir, vou com estilo” pensei.

É claro, uma exageração da verdade momentânea. De fato eu poderia ter tido um “piri-paque” dos doidos ficando muito debilitado, dando trabalho pro Flávio e pra um eventual resgate. De fato eu poderia ter ficado por ali terminantemente, mas achei pouquíssimo provável já que me sentia muito, muito melhor do que da última vez que fui pra montanha com o Tácio e a Aline, ocasião esta que eu cheguei ao meu limite e tive que voltar sozinho 8kms de trilha até o carro, quase me arrastando do quarto quilômetro em diante.

Prometi a meu reflexo no espelho e a minha esposa e alicerce, Lilianne, que abortaria a travessia se me sentisse mal, se percebesse que meu limite estaria novamente à frente do avancé de nossa barraca. E o faria mesmo. Felizmente, isso não foi nem de perto preciso.

Tive sim efeitos colaterais indesejados e com certeza piorei minha anemia. Desde sempre, quando ultrapasso a linha dos 1.800 metros, tenho sangramento nasal. Isso acontece por causa da fragilidade de minhas mucosas nasais quando confrontadas pelo ar mais seco e hostil da altitude, mesmo que pouca (mas significativa pra nós brasileiros que somos em média, nativos de uma modesta altitude de 500 metros acima do nível do mar). Quando vou pro Atacama então, a 2.450 metros, desértico, isso é terrível.

Dessa vez, o sangramento foi tão, mas tão terrível, que eu tive que conviver 96 horas contínuas com cheiro e gosto de sangue de tanto que eu perdia. Tinha que limpar as narinas a cada vinte minutos pra poder respirar sem ser pela boca, o que resseca a garganta e aumenta a sede, problema conhecido na Serra Fina. O Flávio se impressionou com a quantidade de sangue que eu perdia. De fato, deixei um rastro pela travessia de sangue ao longo dos tantos quilômetros de seu percurso. Tenho quase certeza absoluta de que recolhi todos os meus papéis higiênicos usados, mas se esqueci um ou dois pelo caminho, me perdoem.

O mais desagradável era o efeito colateral disso. Aquele cheiro de sangue constante na narina me fez vomitar algumas vezes após soar o nariz e tirar placas de sangue coagulado. Muito, muito desagradável. Flávio assistia àquilo sem poder fazer nada, e eu sofri com o problema do meu jeito: “Levantei, sacodi a poeira e continuei montanha acima”.

Gastei ao todo três rolos completos de papel higiênico durante a travessia (quase um rolo inteiro por dia), o que me causou também feridas na entrada das narinas, que combinadas ao sol terrível que pegamos, me causou queimaduras sobre as feridas. Nossa, quando cheguei em casa e vi o resultado (estado em que estou agora) realmente me impressionei. Que estrago! Mas felizmente estou bem e de pé, gripado, queimado, esfolado, mas realizado.

Chega de enrolação. Decidi fazer a travessia e ponto final. Convidei também o Tácio, mas estava enrolado com a pós dele e não pôde ir, uma pena já que temos projetos em andamento e um deles é medir e nomear algumas montanhas da Serra. Ele ficou na torcida de casa.

Flávio e eu saímos de pontos diferentes é claro, ele de Petrópolis onde mora e eu de São Paulo onde sobrevivo. Cheguei em Passa Quatro três horas antes dele e fiquei papeando com um taxista, com quem já combinei o serviço de nos deixar na Toca do Lobo e nos buscar na entrada do Sítio do Pierre, na estrada que sobe pra Garganta do Registro. Quando ele chegou entramos direto no táxi e fomos subir a montanha.

O tempo estava duvidoso, nublado, deveras úmido, mas tudo isso previsto pelo Mountain Weather Forecasts, que previa para aquele dia, 26 de setembro, alguns milímetros de chuva, mas para os dias subseqüentes, sol absoluto. O taxista Antonio nos levou até a cota dos 1.300 metros de altitude, ponto limite para seu carro que não poderia passar dali. Descemos, pagamos e começamos a andar no meio da neblina que impedia completamente nossa visão além de vinte metros pra cima, não tínhamos nenhuma visão. Com o passar do tempo o negócio foi ficando molhado e resolvi vestir meu abrigo, seguimos.

Depois de mais ou menos meia hora andando, chegamos a 1.560 metros de altitude na famosa Toca do Lobo, uma gruta bem legal que na verdade talvez nunca tenha servido de toca de nenhum lobo, mas é assim que é conhecida. Fica à beira de um rio, e os primeiros passos da rota são de travessia de tal rio.

Estava tudo muito úmido, estávamos encharcados, e já era tarde, não iríamos progredir muito seguindo pra cima neste mesmo dia, mesmo acampando em um dos 29 pontos de acampamento que há na Serra. Então chegamos à decisão conjunta de passar a noite ali mesmo. Seria mais cômodo, seco, e começaríamos cedo na manhã seguinte. Montamos a barraca, colocamos roupas pra secar dentro da caverna que é muito quente, nos divertimos papeando e depois de jantar dormimos.

A noite foi um piscar de olhos, e acordamos com o tempo muito melhor, com a maioria de céu na cor azul claro. Preparamos tudo e começamos a caminhar. O início foi bem puxado já que o corpo sai de estado de repouso de muitas semanas e já encara uma trilha inclinada logo de cara, úmida e escorregadia. Tudo somado ao peso das mochilas, a do Flávio infinitamente mais pesada do que a minha, na casa dos 23 ou 24 kgs sem água. Preciso evitar carregar muito peso, pois isso só me desgastaria mais rápido, então meu peso se limitava ao máximo de 14kgs, sem carga de água. Depois que pegamos água, meu peso aumentou 3,5kgs e o do Flávio em 5kgs. Trilha acima, primeiros minutos de dias na Serra.

Logo começamos a nos maravilhar com as vistas da Serra Fina, já que as nuvens se afastaram um pouco revelando encostas escarpadas exuberantes. Só uma coisa atrapalhava um pouco, muito vento e muito frio. Ventava mais ou menos 50kms/h e a temperatura estava baixa, por volta dos 5 graus celcius a só 1.850 metros de altitude, o resultado era uma sensação térmica de zero. O começo foi gélido e ficou assim até quase o topo do Capim Amarelo.

A 1.850 metros, vento e frio cortantes no começo da crista do Capim Amarelo. Foto de Flavio Varricchio.


Contemplação.


Esse é o tipo de represa que eu curto. Da natureza pela natureza.


Progredimos sem grande dificuldade, galgando a famosa crista do Pico Capim Amarelo, primeiro objetivo da travessia. As horas passavam rápido, a altitude mudava rápido, e em um piscar de olhos já passávamos da linha dos dois mil metros, onde vimos pela primeira vez ao vivo a famosa crista do Capim Amarelo, visão muito fácil de se ter em uma rápida busca no google imagens. Visão magnífica, uma sessão da crista que lembra muito as famosas “knife ridges” (crista de faca) norte-americanas e alpinas. De tão fina, com mais ou menos um metro de largura em uma sessão de uns cem metros de trilha, se o vento estiver realmente forte, um trekker pode facilmente ser jogado lá de cima encosta abaixo, já que em ambos os lados a inclinação beira os 60º-65º. Muito belo mesmo...

Passamos por aí, fizemos fotos e seguimos pra cima. Logo ultrapassamos a cota dos 2.350 metros e começamos as sessões de trepa-pedra do Capim Amarelo, onde tivemos uma surpresa agradável, gelo na trilha. Mal sabíamos, encontraríamos muito mais ao longo do segundo e terceiro dias...

Finalmente, 5hs após começar, chegamos no alto dos 2.500 metros de altitude do Pico do Capim Amarelo (nota: O IBGE dá sua altitude como sendo 2.392 metros, completamente errada). Ao contrário do que passamos na crista, vento cortante e frio, no cume fazia até um pouco de calor. Foto de cume, exploramos um pouco, e logo chegamos à decisão de começar a descida oposta pra acampar no colo entre esta e a próxima montanha, o Morro do Melano. Não tínhamos visão nenhuma por causa da nuvem que nos cercava, então começamos a descer.

Foto de cume no Capim Amarelo. 2.500m.




Ambos checávamos a rota, cada qual com seu GPS, apesar de que por ser um modelo mais antigo, o meu de nada servia com tempo nublado ou dentro de mata, já que conseguir sinal de satélite se torna uma epopéia tecnológica. Encontramos a rota de descida e seguimos pra baixo. Logo chegamos a uma florestinha de bambuzinhos bem fechada, mas com trilha incrivelmente bem marcada, continuamos descendo. Depois de dois ou três minutos um “dead end”, beco sem saída. Demos de cara com uma rocha e a trilha literalmente acabava ali.

Mas que coisa, seguimos a trilha super marcada e essa travessia é muito repetida por dúzias de pessoas ao mesmo tempo, onde será que erramos?”. Flávio subiu de volta procurando nosso erro enquanto eu analisava como vencer a rocha, com aquele chão instável e molhado seria difícil e até dava, mas não havia chão do outro lado!

Flávio me gritou, havia encontrado uma entrada a esquerda marcada com fitas. Mas que coisa! A trilha que descemos era muito, muito mais bem marcada do que a trilha da travessia em si. Subir aquilo de volta foi uma luta e perdemos tempo e energia. Este foi nosso único erro durante toda a travessia, e a julgar pelo estado da trilha errada, extremamente bem marcada e com os bambus cortados, muita gente erra aquele ponto.

Seguimos pra baixo, e só nessa porcaria perdemos mais ou menos meia hora. As horas passavam e avançávamos muito bem apesar do tropeço. Depois de mais ou menos uma hora e vinte minutos chegamos a cem metros em linha reta do acampamento abaixo do Capim Amarelo, na altitude de 2.280 metros, e tínhamos que subir 25 metros por algum lugar pra chegar ao local de pernoite, mas estávamos cercados por uma neblina muito forte. Não tínhamos orientação visual e ambos aparelhos de GPS estavam desorientados por causa do tempo ruim, até mesmo o dele, um garmin 60csx, aparelho mais popular entre os montanhistas brasileiros, de excelente resultado.

Buscamos por rotas diferenciadas, por diversas vezes, nos molhando, buscando feito doidos, mas o mais próximo que chegamos do acampamento foi a distância de 62 metros em linha reta. Incrível! Não chegávamos a lugar algum.

Decidimos acampar ali mesmo, pois no meio do capim anta havia dois pontos de acampamento, um fora da floresta de bambuzinhos, e outro dentro que parecia uma geladeira de tão frio e cercado por gelo na vegetação, bastante sincelo.

Estávamos frustrados, como pode um local tão próximo não querer ser encontrado? Mais perto do que a caminhada até a padaria do meu bairro, entretanto tão distante quanto a outra extremidade da Serra. Foi então que um vento soprou...

Quando esse vento soprou, por mais ou menos vinte segundos pude ver um totem do outro lado do capim anta, bem visível, subindo a encosta rochosa levemente inclinada do morrinho à nossa frente. “Flavio, olha um totem ali, vamos tentar mais uma vez!”. A essa hora já tínhamos até escolhido nosso acampamento, eu já tinha vomitado pela primeira vez, era decidido passarmos a noite ali. Lá fomos nós tentar.

Fácil, tão fácil quanto pegar doce de criança, subimos a pequena e curta sessão de rampa de rocha com as mãos congelando a ponto de começar as “alfinetadas de frio”, até que a distância diminuiu pra 50 metros, 40 metros, 30 metros, chegamos ao acampamento! Putz, que coisa...Nesse momento a sensação térmica era facilmente de –5°C.

Nosso acampamento a 2.305 metros, abaixo do Capim Amarelo que se vê ao fundo na atmosfera superior da foto. A inferior é meio sombria, fria.


Nessa brincadeira perdemos mais quarenta minutos, então juntando a descida errada da trilha que leva a lugar algum com a dificuldade de orientação pra chegar ao acampamento, levamos o dobro do tempo que se leva do cume do Capim Amarelo até tal acampamento, de uma hora nosso tempo foi pra duas horas. Terminamos a caminhada do dia a 2.305 metros de altitude depois de sete horas de trabalho.

Montamos acampamento, jantamos, e depois disso nos divertimos com o famoso roedor da Serra Fina, que veio cheirar e buscar por alimento. Que bichinho curioso e teimoso, não adiantava nada espantar, ele voltava. Creio que de tanto ver montanhista e ser alimentado pelos mesmos, se acostumou à presença humana e sequer se assusta, a não ser com movimentos bruscos. Dá até pra fazer carinho no dito cujo que ele aceita. Depois de quase uma hora no divertimento com o bichano fomos dormir, pois fazia bastante frio.

Acordamos em clima gelado, e com tempo super limpo, não havia uma nuvem sequer no céu, e a barraca estava branca de geada. A temperatura pela manhã, -1,9°C. Presentão já que não esperávamos por isso. Fotos, divertimento, frio (1: por causa da minha condição, minha resistência ao frio caiu drasticamente, então levei meu pluma comigo!/ 2: Pra economizar peso, levei o saco de dormir da Lili que é pra extremo de +5ºC, resultado, senti frio nos pés todos os dias), preparamos tudo e depois de um rápido café da manhã, seguimos nossa estrada rumo ao primeiro cume do segundo dia, Morro do Melano.

Vegetação congelada.


O Morro do Melano é um enorme maciço vizinho do Capim Amarelo, maior que ele em altitude, composto de uma seqüência de cinco corcovas, sendo a última a mais alta, que liga o Capim Amarelo ao vale que separa a Pedra da Mina do Morro do Tartarugão, outra enorme montanha brasileira cujo cume já pisei exatamente dois anos atrás. Dia 23 de setembro de 2010.

Pouco divulgado, menos ainda contado como cume (pela maioria, não todos), na verdade eu diria que o Morro do Melano é mais montanha propriamente dita do que o Capim Amarelo, levando em consideração a altitude do colo entre as duas montanhas. Mas isso é papo pra outra argumentação. Galgamos a rampa rochosa de sua encosta logo após a floresta que entramos depois do grande e ótimo acampamento Maracanã, vinte minutos após o que dormimos. Aliás, acredite ou não, subimos a rampa rochosa desviando de gelo pra não escorregar e morrer na queda. A rampa estava com todos os pontos de água congelados! Acredito que durante a noite a temperatura foi ainda menos que os –1,9°C que vi no meu relógio, mas não registrei.

Aos poucos nossa água foi se esgotando, conforme ganhávamos altitude no Melano, fazendo esforço pra vencer sua crista de tanto sobe e desce, sob forte sol. Foi então que tivemos uma visão quase inacreditável: Mais gelo. Não somente mais gelo, muito gelo! Além de ser uma visão completamente “apetitosa” no sentido de oportunidade de presenciar o fenômeno, também havia o sentido literal da palavra “apetitoso”, gelo de água pura da montanha que mataria nossa sede por mais alguns minutos.

Quanto gelo!


Picolé natural de montanha pra matar a sede.


Chegando ao cume do Melano. Nessa panorâmica dá pra ver a Serra do Papagaio, Mitra do Bispo, Alto dos Ivos, Pico 3 Estados, Agulhas Negras, Pedra da Mina e Morro do Tartarugão.




O que acontece é que o fenômeno foi SINCELO, que segundo o wikipedia é “um fenómeno meteorológico que acontece em situações de nevoeiro aliado a uma temperatura de -2ºC a -8ºC, e que resulta do congelamento das gotas de água em suspensão, quando estas entram em contato com a superfície. Quando sob um nevoeiro muito denso, pode produzir o mesmo efeito que uma nevada e ocorrer a precipitação de cristais de gelo em pleno nevoeiro, sem haver nuvens no céu. Não deve ser confundido com geada. A película de gelo forma-se em qualquer superfície que esteja no caminho da neblina, dando às folhas e caules das árvores uma aparência vítrea”. Quando o sincelo é muito forte, como o que vimos, os cristais de gelo crescem tanto que tomam formato de cubos ou pedras de gelo, e caem da vegetação no solo por causa do peso. No sul do Brasil, Serra Catarinense, é comum ver sincelo em formatos de cacho de uva durante o inverno.

Muito comum nas serras mais frias brasileiras durante o inverno, mas não na primeira semana de primavera! Fotografamos, filmei, matamos a sede, e continuamos. Que presente da natureza...

Seguimos em frente, passamos pelo ponto mais alto do Melano onde medi ter 2.566 metros. Iniciamos a descida oposta para entrar no enorme vale onde fica a cachoeira do ferrugem, já sedentos novamente por água fresca. Passamos direto pelo primeiro ponto de água, chegando no Rio Claro que separa o 11° acampamento do 12° acampamento. Finalmente, água em abundância...Tínhamos mais ou menos 100ml de água cada um.

Paramos, comemoramos com largos sorrisos exibindo nossos lábios já rachando da secura, abastecemos os reservatórios de água, fizemos suco de limão. Foi um divertimento que durou cerca de meia hora incluindo o tempo que o Flávio gastou trabalhando, já que pra ele além da aventura de pisar pela primeira vez na Serra Fina, havia o dever da vida de fotógrafo.

Recomeçamos a caminhar. Agora começamos a atravessar o vale já com a Pedra da Mina crescendo rapidamente diante de nós. Chegando na base da montanha, precisei soar o nariz de novo e lá se foi todo o líquido (suco) que ingeri pra me hidratar, vomitei tudo. Mas que coisa mais desagradável viu...Recomposto, seguimos pra subida da face oeste da Mina, após apreciar a parede sul da montanha.

Por fim, exatamente às 15:00h pisamos no cume da montanha, minha sexta vez e primeira vez do Flávio. Levamos novamente sete horas total de caminhada, desde nosso acampamento até o topo da Mina, incluindo todas as paradas fotográficas, de vômito, abastecimento de água e apreciação do belo da montanha. Chegando cedo lá, tivemos tempo de escolher com calma onde acampar já que continuávamos completamente sós, montar a barraca, vomitar de novo depois de soar o sangue, e nos preparar pro momento do pôr do sol e devidas fotografias que nos proporcionaria.

Auto retrato na Pedra da Mina, de novo.


Hora de trabalhar pro Flávio.


Hora de escrever pra mim.


Hora de trabalhar pra mim.


Simpatia da vida animal.


Frio!


Hora de dormir pra todos nós. Marins - Itaguaré ao fundo.




A temperatura caiu muito rápido, a última vez que chequei após todos os nossos cliques de frente pro Vale do Ruah, também registrei, e fazia –2,7°C exatamente às 19:14h da noite, pouco depois da última luz de sol deixar o céu. Só não fez mais frio em sensação térmica porque não havia vento. Não registrei durante a noite, mas provavelmente chegou a –5°C, visto que no PNI durante essa mesma noite a mínima foi de –7°C. Lembrando, primeira semana da primavera depois de um inverno muito fraco do ano de 2012.

Fomos dormir já descansados depois de longas sete horas de caminhada e mais uma hora de deleite fotográfico que também serviu de descanso. Esta noite não precisaríamos preservar água, pois teríamos no Ruah nos primeiros minutos de caminhada do dia seguinte.

Continua na parte dois daqui ha uma semana...